segunda-feira, 27 de junho de 2016

Livro 17 - O Irã sob o chador

Em “O Irã sob o chador – Duas brasileiras no país dos aiatolás”, Adriana Carranca e Marcia Camargos descrevem suas aventuras e desventuras em um país que é muito mais do que chega aos brasileiros pelos meios de comunicação e mesmo através do cinema. Publicado pela Editora Globo em 2010, o livro mescla história, reportagem e diário.

O que mais me surpreendeu na narrativa é a força das mulheres iranianas, que eu já mencionei nessa outra postagem. As limitações impostas ao vestuário e aos costumes são, em longe, superadas por avanços no mercado de trabalho e na formação intelectual. As escolas de cinema são um exemplo:

“O número de escolas de cinema vem crescendo, e joga a cada ano no mercado mais de vinte diretores, entre eles muitas mulheres. Nas duas últimas décadas, a porcentagem de diretoras iranianas é maior do que na maioria dos países ocidentais.”

Além da presença crescente de mulheres, o cinema iraniano é reconhecido por importantes festivais, que tiveram edições boicotadas por iniciativa de produtores locais e com apoio de importantes nomes do cinema mundial, em protesto contra a repressão, perseguição e tortura de opositores do governo, inclusive cineastas, em 2009 e 2010. 

Há contrastes bem interessantes no livro. Por um lado, a cortesia dos iranianos surpreende muito. Por outro, existe uma série de regras sociais que impedem manifestações públicas de afeto, como um abraço, entre pessoas de sexos opostos, ou entre iranianos e estrangeiros. Exemplos são a necessidade de casais apresentarem a certidão de casamento ao se hospedarem em hotéis, os quais também não aceitam, em algumas localidades, que iranianos e estrangeiros se hospedem no mesmo quarto, mesmo que sejam duas mulheres ou dois homens.

A solução adotada para lidar com os LGBTs também surpreende. No Irã, a cirurgia para mudança de sexo é realizada pelo sistema público de saúde. Realizando essa operação, quem é trans pode emitir novas identidades e ocorrem, inclusive, casamentos. Portanto, deixam de ser homossexuais, já que agora são de outro sexo. No entanto, é comum, por exemplo, que ao saber do passado, os companheiros abandonem as esposas trans. E o preconceito também é muito grande. Sem mencionar que o comportamento homossexual é considerado crime no país. Há jovens homossexuais que se submetem à cirurgia de mudança de sexo na tentativa de serem aceitos, mesmo sem ter certeza sobre a necessidade desse procedimento. 

A maior dificuldade das brasileiras no Irã se dá em torno da vestimenta obrigatória para as mulheres. O que se resolve, em boa parte, com gentilezas e auxílios de iranianas sempre dispostas a ajudar estrangeiras sem habilidade com o hijab, o chador e véus de uma forma geral.

Todo esse patrulhamento acaba estimulando diferentes formas de resistência. Um grupo de mulheres comanda, com sucesso, uma rede de táxis exclusivos para mulheres, guiados por mulheres, em Teerã. Mas a repressão ainda é sufocante, como é possível constatar na entrevista que as autoras conseguem com Shirin Ebadi, que tive o privilégio de conhecer pessoalmente nessa ocasião.

Entre as estratégias de resistência aos limites estabelecidos pelo governo, está a literária. Eis minha passagem preferida do livro:

Em Lendo Lolita em Teerã, a professora de literatura Azar Nafisi retrata bem esse aspecto da sociedade iraniana pós-revolução. Proibida de lecionar literatura estrangeira na Universidade de Teerã, ela reuniu seus sete melhores e mais dedicados alunos em encontros secretos semanais, durante dois anos, na sua própria casa, para ler e discutir obras banidas como O grande Gatsby, Madame Bovary e Lolita. Desses estudos e das deliciosas conversas informais sobre suas vidas pessoais, naquela época, surgiu um incrível paralelo entre o personagem opressor de Humbert e o peso do regime sobre as iranianas – as Lolitas – que vinham tendo a sua adolescência e juventude gradualmente roubadas, sob seu domínio.”

É uma ótima leitura. Assim como em “Mulheres sem homens”, é possível identificar muitas similaridades entre as iranianas e as brasileiras. E saber que o Irã é muito mais do que estamos acostumados a ouvir a respeito dele. O filme iraniano "A separação" também contribui para desmistificar um pouco essa visão limitada sobre o país:

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Livro 16 - Memórias de uma infâmia

Comprei o livro de Lydia Cacho, “Memórias de uma infâmia”, por acaso. Dei uma olhada na contracapa e a história de uma jornalista em sua luta contra a pedofilia e a pornografia infantil no México me interessou. Em parte, porque acabara de ler “Spotlight – Segredos Revelados”, que me causou náuseas e um incômodo muito grande sobre esse tipo de abuso contra crianças.
As histórias desses dois livros têm muitos pontos em comum. O principal deles é a conivência e a cumplicidade de autoridades, que em ambos os casos empreendem esforços para que os crimes sejam varridos para debaixo do tapete. Outro aspecto comum às histórias são as tentativas de intimidação dos jornalistas determinados a revelar os crimes.
Também em Spotlight, a equipe do Boston Globe é intimidada em diversos momentos. É claro que no caso de Lygia Cacho, de forma muito mais enfática e cruel. Ela foi seqüestrada, torturada e estuprada a mando de políticos, empresários e policiais envolvidos na rede de pedofilia denunciada em seu livro. Depois de libertada, foi vítima de um atentado.
Em sua trajetória, não faltaram figuras repugnantes que não pouparam esforços para difamá-la e proteger uma poderosa rede de pedofilia e pornografia infantil que, a partir de Cancun, no México, se estendia para outros países do mundo. O poder deles era (possivelmente ainda é) tão grande que contava com a cumplicidade de um governador e de representantes da justiça mexicana.
Apesar de todas as dificuldades e da infâmia que enfrentou, Lydia Cacho manteve-se firme e não desistiu. De acordo com ela, sua luta é pelas meninas e pelos meninos abusados. Surpreendentemente, ela conseguiu manter-se otimista em meio a tanta podridão, como escreveu em seu diário após uma das inúmeras averiguações psicológicas às quais precisou se submeter:
“Depois que meus olhos viram tanta miséria humana, examino meu coração - como se fosse uma cesta de maçãs vermelhas – em busca da esperança fresca e doce. Eu a conheço. Mesmo que me persigam lá fora, aqui, em minha alma, há paz, paz que se nutre de minha persistência, de minha determinação. A verdade é perdurável, o medo é perecível. Minha fortaleza e meu poder repousam em aceitar a realidade e revelá-la tal como é.”
O caso das violações dos direitos humanos da autora teria ficado por isso mesmo, se não fosse o envolvimento de artistas, jornalistas e intelectuais de todo o mundo, que enviaram às autoridades mexicanas um abaixo-assinado solicitando providências. Entre os signatários estava o cineasta Inarritu, diretor do filme “O Regresso”, que concorreu ao Oscar 2016.
No entanto, a leitura desse livro me fez lembrar de outro filme, que conta a história de outros dois jornalistas, empenhados em denunciar a violência sistemática contra mulheres em Juarez, na fronteira do México com os Estados Unidos. Com participação de Jeniffer Lopez e Antonio Banderas, “Cidade do silêncio” é baseado em fatos reais que corroboram as dificuldades em enfrentar crimes no país que tenham como cúmplices os poderes político e econômico. 

sábado, 4 de junho de 2016

Livro 15 – A arte de pedir

Já faz alguns meses que li “A arte de pedir”, de Amanda Palmer (Editora Intrínseca). O livro é baseado em uma palestra da autora ao TED Talks. A motivação para o convite foi a campanha da banda dela, Dresden Dolls, em um site de crowdfunding. A arrecadação foi a maior já alcançada por um projeto musical desde o surgimento da plataforma.

A verdade é que eu até gostei de algumas passagens do livro, mas acredito que a essência das quase 300 páginas dele está, de fato, naqueles xxxx minutos da palestra. A forma como ela fala em escassez e abundância é muito interessante. Ela defende que é possível viver bem com o suficiente e concordo plenamente com essa premissa.

Alguns relatos dela despertam inevitavelmente a simpatia de quem lê. Que mulher nunca passou sufoco por estar sem absorventes? Quantas já pediram um para estranhas em banheiros públicos? Eu já. Creio que, mais do que a arte de pedir, Amanda Palmer fala sobre a necessidade de voltarmos a confiar nas pessoas. Mais do que isso, não deixar de acreditar na humanidade só porque algumas pessoas não merecem essa confiança.  É uma conta com a qual só perdemos, de acordo com ela. Acho que ela tem razão. Precisamos confiar mais, olhar mais nos olhos, permitir não só que outros nos ajudem, mas que façam parte de nossas vidas.

Gostei muito da metáfora do liquidificador, que seria a forma como juntamos todas nossas experiências, as pessoas que conhecemos, novos sabores e sensações, inspirações do dia a dia. Tudo isso, misturado, vai fazendo de nós quem somos.

Para finalizar, é claro que, como fã dos felinos que sou, não poderia deixar de mencionar o amigo de Amanda, Casey, que teve um peixinho chamado Everything (Tudo). Quando o peixe morreu, ele adotou uma gata, à qual deu o nome de Something (Alguma coisa). Bem mais realista. Uma bela metáfora para a vida e nossas expectativas em relação a ela.

Enfim, independentemente da leitura ou não do livro, recomendo muito a palestra de Amanda Palmer no TED Talks - “A arte de pedir”: