quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Livro 39 - Montanha Russa

As crônicas da Martha Medeiros fazem parte da minha história. Tive o primeiro contato com elas no Jornal Zero Hora, quando ainda vivia no Rio Grande do Sul. Recentemente, encontrei esse livro que reúne algumas delas, "Montanha Russa" (L&PM). São crônicas que podem ser doces ou ácidas, às vezes até um tanto amargas, mas nunca insossas.

Entre as que mais me chamaram a atenção, mencionarei aqui uma bem ácida e depois uma extremamente doce. Em "Far away", a autora analisa a letra da música homônima de Robert Cray de um ponto de vista inegavelmente feminista:

"Tenho escutado o último disco do Robert Cray, que esteve recentemente fazendo um show em Porto Alegre. Aliás, o show dele foi um tanto burocrático, preferi o show de abertura feito por Jeff Healey, bem mais intenso e "sujo", no melhor sentido. Mas é Cray que ando escutando no carro, em especial a faixa Far away, cuja letra é o lamento de um homem que está saindo de casa. Ele diz pra esposa que ela é ótima, que o problema não é com ela: ele é que não conhece a si mesmo e precisa se descobrir. Pega suas coisas, deixa as chaves na estante e avisa que na manhã seguinte voltará para comunicar às crianças, assim que acordarem, que papai tem que ir embora. A guitarra chora durante os seis minutos da música, e a gente quase chora junto.
Pra você, uma música é apenas uma música, mas pra mim uma música é uma música e um assunto, assim como uma pesquisa eleitoral é uma pesquisa eleitoral e um assunto. Um dia vou falar sobre a fome de assuntos que faz sofrer todo colunista. Pois bem. De tanto ouvir esta canção do Robert Cray, comecei a achar que é mesmo um privilégio ser homem. Um belo dia o cara se dá conta de que não sabe nada sobre si mesmo, que há muitas outras coisas para serem vividas do lado de fora da porta da rua e que se continuar na sua vidinha regrada vai perder o melhor da festa. Aí ele amansa a patroa dizendo que ela é uma mulher estupenda, não tem culpa nenhuma de ele ser um ignorante sobre si mesmo, e sai de casa e do casamento, não sem antes ter a consideração de não acordar as crianças. Ele voltará no dia seguinte pra se despedir dos pequenos, que ficarão eternamente gratos por papai ter sido camarada em deixá-los dormir antes de receber a má notícia.
Mulher também tem vontade de se descobrir, fazer sua trouxa e deixar as chaves na estante. Mas imagine a cena. "Crianças adoradas, mamãe precisa se descobrir. Papai, que é um sujeito bacanésimo, vai ficar cuidando de vocês, ok? Tchauzinho."
Punk rock. Nem a Courtney Love cantaria isso sem engasgar. Mulheres têm que se descobrir durante o trajeto do ônibus, têm que se conhecer melhor enquanto escolhem o tomate menos murcho na feira, têm que experimentar novas vivências ali no bairro mesmo. Mulheres dizem para seus filhos que vão passar o final de semana na serra com as amigas e eles automaticamente esquecem onde fica o chuveiro, imagine se ela disser que vai pra galera, conhecer o mundo. Suicídio coletivo.
Foi só um pensamento que me ocorreu enquanto ouvia Robert Cray no carro, presa num congestionamento, indo buscar minhas filhas no colégio como faço todos os dias." (fonte: http://blogmulherde40.blogspot.com.br/2011/08/far-away-de-martha-medeiros.html

Quanto ao lado doce, nada como um pirulito com sabor de arco-íris. Amei essa crônica sobre uma roda de conversa com crianças pequenas:

"Sabor de arco-íris
O assunto em pauta é literatura. Semana do Livro, Bienal do Livro, lançamento de livros. Aleluia! Um dia a turma que não lê vai descobrir o que está perdendo. Pois entre tantos eventos para incentivar a leitura, fui convidada a participar de um que me deixou ligeiramente aflita: conversar com alunos de um maternal. Eu já havia estado no colégio Anchieta conversando com a turma da minha filha mais velha, que tem 10 anos. Agora o convite era para falar com a turma da minha filha mais nova, de"5, no Amiguinhos da Praça. Fiquei imaginando como seria ficar cercada por um monte de baixinhos que mal sabem escrever o próprio nome. Que perguntas fariam? Quantos segundos levaria para eles perderem o interesse nas minhas respostas? Perigo: crianças!
Mas não amarelei. Chegando lá, sentei no chão, numa rodinha. Vários pares de olhinhos me examinavam. Não saí correndo. A tia perguntou se alguém queria fazer uma pergunta. Oba, vou ganhar tempo até um deles criar coragem, pensei. Todos levantaram o dedo. To-dos.
A partir daí, foi uma festa. Passei meia hora na Terra do Nunca, bombardeada por um afeto e uma espontaneidade que me tornaram consciente de tudo o que a gente perde quando vira adulto. Alguém perguntou se era verdade mesmo que o papel vinha da árvore. Se eu já tinha escrito um livro sobre dinossauros. Como é que eu fazia pra dormir depois de ler uma história de terror. Se era eu mesma que juntava as páginas para montar o livro. De onde vem a palavra certa. Por que meus livros não têm desenho. Se dava pra jogar futebol e ser escritor
ao mesmo tempo. Qual o chiclete que eu mais gostava. Tu conhece a Disney? Meu pai é engenheiro. Meu pai não tem emprego. Minha mãe te adora. A minha faz macramê. Eu gosto de livro de amor e livro de monstro. Tenho dois irmãos. Eu, dois pais. Ainda durante aquela tarde, ouvi minha filha dizer que pirulito tem sabor de arco-íris. E um menino, malandro, me perguntou o que eu queria ser quando crescesse. E eu lá quero crescer?" (fonte: http://escritapaulamedeiros.blogspot.com.br/2013/07/sabor-de-arco-iris.html

Nada como a espontaneidade e a curiosidade natural delas para trazer um sopro de otimismo, ânimo e felicidade a qualquer criatura. Crescer para quê?


Ouça aqui Robert Cray cantando e tocando "Far away".

domingo, 27 de novembro de 2016

Livro 38 – Claraboia

“Claraboia”, de José Saramago, foi escrito pelo autor no começo de sua carreira, quando ainda não era um escritor conhecido. Uma editora não respondeu a ele sobre o original e depois disso ele ficou um longo período sem escrever. A publicação só aconteceu depois da morte de Saramago, em 2011.

Nessa obra, Saramago relata o dia a dia dos moradores de seis apartamentos de um mesmo prédio, que tem uma claraboia. Em um deles, vivem quatro mulheres: Cândida é a figura central, que vive com suas filhas Adriana e Isaura e com sua irmã Amélia. Entre elas Isaura é uma leitora voraz: “Ardiam-lhe os olhos e tinha o cérebro excitado”.

As quatro mulheres costumam ouvir música clássica juntas. Em determinado momento, ficam encantadas e descrevem uma canção como bela, palavra que valorizam e é assim descrita por Cândida:

“Há palavras que se retraem, que se recusam – porque significam demais para os nossos ouvidos cansados de palavras. É como a palavra Deus para os que crêem. É uma palavra sagrada.”

O sapateiro Silvestre e sua esposa Mariana vivem em outro apartamento. Eles dão abrigo ao estudante Abel, que também gosta de ler e carrega consigo um exemplar de “Os irmãos Karamazov”, leitura que abandona para disputar uma partida de damas com Silvestre. Os dois têm conversas interessantes sobre a vida e as escolhas que fazemos.

Abel tem impressões interessantes ao chegar e se instalar no apartamento. Sobre a mobília, ele conclui, enquanto observa as instalações: “Móveis refletem a vida dos donos, como os animais domésticos”. E sobre Mariana, pensa: “(...) tão gorda que fazia riso, tão boa que dava vontade de chorar”.

Em outro apartamento, vive Lídia, que recebe visitas freqüentes de seu amante, Paulino Morais, e eventualmente também é visitada pela mãe. Abel se sente atraído por ela, assim como outros homens que vivem no prédio e o freqüentam.

Claudinha vive com os pais, Anselmo e Rosália, em outro apartamento do prédio. Ela pede ajuda a Lídia, para que solicite ao amante que lhe consiga um trabalho.

Carmem e o marido Emílio vivem em outro apartamento, com seu filho Henrique. O casal tem problemas de relacionamento e suas brigas chegam às vias de fato em alguns momentos. “A presença do marido diminuía-lhe o prazer da manhã”.

Por fim, o casal Justina e Caetano ocupa o último apartamento do prédio. Ambos vivem uma relação complicada e ela sofre de depressão. “A noite deixava-a sempre sem forças, muito cansada, com uma estúpida vontade de chorar e de morrer”.  E quando acontece um momento de aproximação com o marido, de quem ela se mantém distante desde a morte da filha Matilde, Justina quer resistir ao desejo que sente por ele, para manter a frieza e o poder em casa: “Tinha de escolher entre o prazer e o domínio”.

A estrutura narrativa lembra outra obra, de 50 anos antes, escrita pelo brasileiro Aloísio de Azevedo, O Cortiço (post aqui). Em “Claraboia”, Saramago ainda não escrevia da forma como sua escrita ficou conhecida depois de “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “O ensaio sobre a cegueira”, com textos menos pausados e sem quebra de parágrafos.

Existem muitas adaptações de obras de José Saramago para o cinema, teatro e outras linguagens. Particularmente, gosto muito dessa animação de uma história para crianças dele, “A maior flor do mundo”, narrada pelo próprio escritor:




Também não poderia deixar de mencionar aqui o conhecido vídeo que mostra a reação de Saramago após assistir, junto ao diretor brasileiro Fernando Meirelles, ao filme “Ensaio sobre a cegueira” pela primeira vez:

Livro 37 – Quarto de despejo

Acredito que a leitura de diários é a melhor forma de se colocar no lugar de outro, em determinado contexto, época, condição. Foi assim quando li “O diário de Anne Frank” e “Eu sou Malala”. E não poderia ser diferente com “Quarto de despejo – Diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus (Editora Ática). Não é uma leitura agradável e a principal razão para isso é a fome, constantemente presente no dia a dia dela e de seus filhos.

A escrita dela é visceral, porque assim foi sua vida. Catadora de papel e outros materiais recicláveis, ela viveu na favela do Canindé, em São Paulo, que ficava próxima do estádio da Portuguesa, por onde hoje passa a Marginal Tietê. A cada dia, acordava cedo para buscar água e precisava catar materiais para ter dinheiro para comer e alimentar seus filhos, o que nem sempre era possível, fazendo com que ela pensasse em suicídio.  

“... Já faz tanto tempo que estou no mundo que eu estou enjoando de viver. Tambem, com a fome que eu passo quem é que pode viver contente?” (12 de outubro de 1956)

Apesar de todas as dificuldades, Carolina continuava lendo, escrevendo e tentando se manter otimista e a preservação dos erros de ortografia e gramática torna esse relato ainda mais punjente:

“Eu sou muito alegre. Todas manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço.” (22 de julho de 1955)

No entanto, mesmo em momentos inspirados, frequentemente a dureza da vida de quem nem sempre tem o que comer acaba se manifestando nas anotações da autora:

“... Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos arvoredos que existe no início da rua Pedro Vicente. As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo o meu gesto de amor a minha Pátria. (...) Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no Casemiro de Abreu, que disse: ‘Ri criança. A vida é bela.’ Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: ‘Chora criança. A vida é amarga.’” (19 de maio de 1956)

Em alguns períodos, ela fica sem escrever por meses e depois, ao retornar, explica que não teve tempo, que a situação está difícil, que ficou doente... ao julgar pelos relatos dela, fica difícil imaginar dias ainda mais difíceis do que aqueles que ela descreve. Mas eles existiram. Carolina tem uma consciência política e social apurada. Ela chama a favela de quarto de despejo, que é o cômodo da casa em que se deposita o que não é bonito, onde se esconde as tralhas. E ela se coloca nesse lugar, como parte do povo renegado pela sociedade, enganado pelos políticos, ignorado pelas leis:

“... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.” (20 de maio de 1956)

 “Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.” (6 de julho de 1956)

“(...) passei no sapateiro para ver se os sapatos da Vera estavam prontos, porque ela reclama quando está descalça. Estava pronto e ela calçou o sapato e começou a sorrir. Fiquei olhando minha filha sorrir, porque eu já não sei sorrir.” (30 de julho de 1956)

Com todas as dificuldades, Carolina guardava seus livros em um cantinho do barraco e jamais deixou de ler e escrever seus diários. O jornalista Audálio Dantas foi quem a descobriu, quando era repórter. Seu livro foi publicado, ela saiu da favela, mas morreu no esquecimento, em 1977.

Seu amor pelos livros está presente no diário:

“Encontrei um rato morto. Já faz dias que eu ando atrás dele. Armei a ratoeira. Mas quem matou ele foi uma gata preta. Ela é do senhor Antonio Sapateiro. O gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguem escravisá-lo. E quando vai embora não retorna, provando que tem opinião. Se faço essa narração do gato é porque fiquei contente dela ter matado o rato que estava estragando os meus livros.”

“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”

Na edição de 2014, tem algumas curiosidades no final, como a origem do termo "favela", que eu não conhecia, e a menção a adaptações do diário para o cinema, teatro e até um samba de B. Lobo. Fica a lembrança, já que hoje é o centenário do primeiro samba da nossa história, "Pelo telefone".  

Ler e escrever é o que Carolina Maria de Jesus faz para conseguir sobreviver e continuar lutando. Em determinado momento, ela agradece a uma professora que a incentivou a escrever um diário e despertou nela o prazer da leitura. No filme “Escritores da liberdade”, uma história verídica sobre uma turma de alunos do ensino médio nos Estados Unidos tem personagens que lembram a Carolina. E uma professora que mudou a vida deles, incentivando-os a contarem suas histórias em diários, após terem lido “O diário de Anne Frank”. Esse filme deveria ser exibido em todas as escolas de ensino médio e o livro da Carolina Maria de Jesus, lido por seus professores e alunos.



Para encerrar, mais um vídeo.
A filha de Carolina Maria de Jesus realizou o sonho da mãe e tornou-se professora:

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Livro 36 – Deus, um delírio

Richard Dawkins é categórico em “Deus, um delírio” (Companhia das Letras). Em um mundo no qual admitir a descrença gera desconfiança e até acaba afastando as pessoas, admiro sua determinação e honestidade. 

Em tempos de intolerância religiosa, muitas vezes quem não acredita em nada fica de fora de campanhas, políticas públicas e mesmo de protestos contra esse tipo de discriminação. Levei meses para finalmente publicar um post sobre esse livro, quase deixei de fazê-lo. Não odeio ninguém, espero não ser odiada por isso. Observei que os You Tubers que falam sobre esse livro o fazem de forma insegura também, como se fosse desrespeitoso não acreditar em Deus ou questionar sua existência.

Os argumentos de Dawkins deveriam ser lidos também por quem acredita, não para que mudem de ideia, mas para que tenham um contraponto. Assim como quem não acredita pode dar uma lidinha na bíblia ou no alcorão de vez em quando, porque não dói nem tira pedaço. Eu leio até as revistas que Testemunhas de Jeová entregam periodicamente em minha casa. Uma crença (ou descrença) não qualifica ou desqualifica ninguém para nada. Ao menos, não deveria.

O livro é extenso. Li a versão digital e quando me dei conta já estava terminando. Muitos dizem que ele pode ser considerado a bíblia dos ateus. Não acho que essa seja uma comparação justa, porque o livro de Dawkins é cheio de referências históricas, embasamento científico e um trabalho muito sério de busca por qualquer evidências da existência de um poder divino no universo.  É resultado de pesquisa, trabalho, observação atenta do mundo. E como todo cientista, ele está aberto a novas abordagens, evidências, teorias, e preparado para mudar de ideia sem grandes traumas. A bíblia representa o oposto, como qualquer dogma.

Tem dois aspectos que me pareceram fundamentais no livro: a forma como as pessoas se tornam religiosas (aprendendo, desde crianças, a serem assim, se tornando parte de uma religião comum no lugar em que nascem) e o mal que a religião já causou e ainda causa à humanidade. Lembrei do Antônio Abujamra, que ao final das entrevistas do programa "Provocações", da TV Cultura, sempre perguntava: "O que causou mais mal ao mundo, as igrejas ou os bancos?". Acredito que foram as igrejas. Ou seja, ter religião não deveria ser sinônimo de ser alguém justo, honesto, em quem se possa confiar:

“Não acredito que haja um ateu no mundo que demoliria Meca — ou Chartres, a York Minster ou Notre Dame, o Shwedagon, os templos de Kyoto ou, claro, os Budas de Bamiyan. Como disse o físico americano e prêmio Nobel Steven Weinberg, ‘a religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, teríamos gente boa fazendo coisas boas e gente ruim fazendo coisas ruins. Mas, para que gente boa faça coisas ruins, é preciso a religião’. Blaise Pascal disse algo parecido: ‘Os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa’. Meu principal objetivo aqui não foi mostrar que não devemos tirar nossos princípios morais das Escrituras (embora essa seja minha opinião). Meu objetivo foi demonstrar que nós (e isso inclui as pessoas religiosas) na verdade não tiramos nossos princípios morais das Escrituras.”

O filme do qual lembrei diversas vezes enquanto lia é “Tentação”, de 2012, que evidencia diversos aspectos do fundamentalismo apontados por Dawkins. Recomendo muito o livro e o filme também.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Livro 35 – A teoria de tudo

O casamento real de Stephen e Jane e a mesma cena no filme.
Em “A teoria de tudo” (Editora Gente), Jane Wilde, que na ocasião da publicação se chamava Jane Hawking, apresenta um relato denso sobre sua vida com Stephen Hawking. O físico, portador de ELA – Esclerose Lateral Amiotrófica, teve a doença diagnosticada há mais de 50 anos. Na ocasião, ele foi informado de que viveria no máximo dois anos a partir daquele momento.

Jane e Stephen se casaram mesmo com a perspectiva de que ele teria poucos anos de vida. Eles tiveram três filhos. A condição de Stephen piorou gradativamente, mas ele está vivo até hoje. De acordo com um posfácio de 2014 do livro, eles cultivam um bom relacionamento, apesar de terem se divorciado nos anos 90.

Neste caso, eu vi o filme antes de ler o livro. Assisti pela primeira vez em 2014 e fiquei particularmente impressionada com a atuação do ator que fez o papel de Stephen. Também achei interessante a história deles e fiquei com vontade de ler não só o livro que deu origem ao filme, mas também algo escrito por ele. Em 2016, consegui ler “A teoria de tudo”, de Jane Hawking, e também “Uma breve história do tempo”, de Stephen Hawking.

O livro é muito mais abrangente do que o filme. É tão denso que se torna cansativo em alguns trechos. Além disso, a autora se queixa muito das dificuldades que teve em sua vida com Stephen Hawking. De fato, acredito que as coisas tenham sido difíceis e até desesperadoras em alguns momentos e me solidarizo com ela. No entanto, há muitas situações repetidas, histórias contadas mais de uma vez, o que acaba tornando a leitura um pouco maçante.

Já o filme enfatiza os melhores momentos do casal. É um belo filme, leve, provavelmente muito mais leve do que a história dos dois. Acredito que ambos tenham ficado felizes com o resultado. Eles chegaram a acompanhar um dia de gravações pessoalmente.

O título original do livro era “Viagem ao Infinito: A extraordinária história de Jane e Stephen Hawking”. Para quem prefere ficar com a versão mais leve e poética das histórias, recomendo o filme e não o livro. Para quem quer saber mesmo mais sobre a vida deles, que leiam, mesmo que seja denso e longo. Mesmo porque ele tem algumas citações preciosas, como essa, de que gosto muito:

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Livro 34 – Contos do nascer da Terra

Os contos de Mia Couto são incríveis. Já tinha lido, dele, o romance “A confissão da leoa”. Em “Contos do nascer da Terra” (Companhia das Letras), o autor moçambicano traz histórias rodeadas de fantasia, poesia, bonitezas. Inevitável lembrar do poeta brasileiro Manoel de Barros, a quem Mia Couto traz um conto em homenagem, chamado “Miudádivas, pensamentos”:

“Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias”.

Fica difícil selecionar contos para comentar, porque todos eles são muito bons. Logo na introdução do livro, compreendemos porque são contos do nascer da Terra e o autor faz uma linda homenagem ao lado feminino dos seres:

“Não é da luz do sol que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e, afinal, nós poucos aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela intimidade da nossa morada terrestre. Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra.”

Descobri, com essa leitura, que os contos de Mia Couto podem ser ótimos para ler para crianças. Personagens e cenários despertam a curiosidade dos pequenos, como no conto “A viagem da cozinheira lagrimosa”, que li para meu filho antes de dormir e do qual ele gostou muito.

Assim como Manoel de Barros, Mia Couto esbanja poesia ao inventar expressões e palavras. Como “inventador”, em “A última chuva do prisioneiro”, ou “matutinava”, em “O último voo do tucano”. Em “O fintabolista”, Mia Couto introduz o conto com uma singela homenagem às cidades pequenas, de interior, que apesar de seu provincianismo possuem uma cordialidade preservada em relação aos grandes centros urbanos:

“Ninguém pode imaginar a pequenez da minha cidadezinha. Lá, porém, há gente que me dá os bons-dias”.

É uma leitura deliciosa. Um filme que assisti recentemente, baseado em fatos reais, conta uma história que poderia ter sido inventada por Mia Couto. É um filme inspirador, emocionante. Se passa no Quênia e é sobre um senhor determinado a aprender a ler. No Netflix, o filme está com outro título: “O aluno”.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Livro 33 – A arte de semear estrelas

Conheci Frei Betto na época da faculdade, quando assinei durante alguns anos a revista Caros Amigos. Sempre gostei de ler os artigos dele, mesmo quando não concordava com sua opinião. Em 2015, li “A mosca azul” e agora tive a sorte de encontrar na biblioteca do Sesc esse seu “A arte de semear estrelas”, da Editora Rocco.

São contos e microcontos que em alguns momentos me lembraram o Galeano, em outros o Carpinejar. Isso para não mencionar as referências citadas pelo próprio autor, como Machado de Assis, Coelho Neto, Jorge Luis Borges e outros. Como Guimarães Rosa, nesse trecho:

“O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. (...) Guimarães Rosa inaugura Grandes Sertões, Veredas com uma palavra insólita: ‘Nonada’. Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida de fantasias. Não nada. Não, nada.”

Em “Entre fechaduras e rinocerontes”, o autor conta sobre um sonho em que ele era um rinoceronte e sobre como esse tipo de fantasia povoa seu imaginário desde a infância. É claro que com uma forcinha das artes e da literatura:

“Gosto das esferas elegíacas. Da arte que não exprime lamento, dos primitivistas que ignoram as formalidades acadêmicas. Sou por eflorescências. Quase toda semana irrompem em mim vulcânicas primaveras. São flores de fogo. Procuro fixá-las em retábulos e, em exercícios espirituais, copiá-las em pergaminhos. Somente flores e borboletas superam as obras-primas da arte universal. Mas não sou dado a caçar borboletas.”

Como sua assinatura diz, o autor é Frei. No livro, há algumas referências a Deus e à religião, com as quais não compartilho. No entanto, além de religioso ele é um exímio escritor. Tem muita poesia na prosa dele. Como nessa frase que poderia ser um simples tweet:

“A vida é uma viagem sem bilhete de volta. Resta o consolo do álbum de fotos: a memória.”

O que me fez lembrar de um filme assistido recentemente sobre Ernest Hemingway e seu relacionamento com um jornalista norte-americano. Em um determinado momento em um bar, o autor pede ao jornalista que diga um número de um a dez, e ele diz seis. Então o escritor escreve um microconto com seis palavras:

“Vendo roupas de bebê nunca usadas.” (tradução minha)

O filme é baseado em fatos reais e está na Netflix, chama-se “Ernest Papa Hemingway”, ou também conhecido como “Papa: Hemingway in Cuba”.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Livro 32 – As pessoas dos livros

Gostei desse livro da minha xará, Fernanda Young (As pessoas dos livros, Editora Objetiva). A história é de uma personagem cheia de contradições como todos nós, a escritora Amanda Ayd. Por um lado, uma escritora independente e bem sucedida. Por outro, uma mulher enciumada e com sérios problemas de autoestima.

Gostei demais da capa dessa edição também, com a autora de costas na capa. Comecei a ler assim que o livro chegou e só depois de ter lido algumas páginas eu percebi que na contracapa tinha a foto dela de frente.

O incômodo da personagem com a necessidade de ser feliz o tempo inteiro é uma sensação que eu compartilho com ela. Amanda não tem mais paciência para jantares sorridentes e encontros cheios de hipocrisias com as pessoas das quais ela não gosta, ou que ela nem mesmo conhece.

O fato de a autora ser também roteirista, atriz e apresentadora, fez com que minha expectativa a respeito do livro não fosse muito grande. Preconceito meu, talvez? Muito provavelmente. O fato é que a escrita dela é surpreendente. A citação que mais me chamou a atenção foi a que menciona as reações da personagem enquanto leitora, durante a leitura de Thomas Mann (que ainda não li, mas está na minha lista também):

"Ela lê e relê, e todos os pêlos de seu corpo se levantam, eriçados. As pontas de seus seios saudáveis ficam ainda mais rijas, e a sua pele, toda pontilhada como uma galinha depenada. Só porque Thomas Mann está dizendo que 'não existirá paixão real, qualquer que seja a grande história de amor, o quinto ato derradeiro e fatal de uma ópera, a mais tórrida experiência sexual descontrolada, que seja maior do que a arte. Esta que marca o rosto de quem a domina com sulcos', feliz em deixar deu rastro de destruição. Mas que oferece, em troca de tanta dor, um tipo de supersensibilidade, uma curiosidade por minúncias, e uma única e incomparável capacidade para viver, 'mesmo que num monástico silêncio de existência exterior', o que nenuma vida tomada por esses prazeres todos citados logo acima poderia produzir. O escritor vive o que quiser; e como isso cansa."

Participei de um encontro sobre esse livro e muitas pessoas não gostaram dele. É provável que aconteça com os livros o que acontece com a autora: há quem a admire muito e quem não a suporte. Eu gostei da leitura. Fiquei com vontade de ler outros livros dela. Quem sabe em 2017...

Ao reler alguns trechos para escrever esse relato, lembrei de um filme que assisti há poucos dias na Netflix, chamado “O último capítulo”. Assim como “As pessoas dos livros”, o filme é sobre uma escritora, porém de livros de terror. Não sou muito fã desse gênero, mas acabei assistindo pela temática e não achei ruim.