Entre as que mais me chamaram a atenção, mencionarei aqui uma bem ácida e depois uma extremamente doce. Em "Far away", a autora analisa a letra da música homônima de Robert Cray de um ponto de vista inegavelmente feminista:
"Tenho escutado o último disco do Robert Cray, que esteve recentemente fazendo um show em Porto Alegre. Aliás, o show dele foi um tanto burocrático, preferi o show de abertura feito por Jeff Healey, bem mais intenso e "sujo", no melhor sentido. Mas é Cray que ando escutando no carro, em especial a faixa Far away, cuja letra é o lamento de um homem que está saindo de casa. Ele diz pra esposa que ela é ótima, que o problema não é com ela: ele é que não conhece a si mesmo e precisa se descobrir. Pega suas coisas, deixa as chaves na estante e avisa que na manhã seguinte voltará para comunicar às crianças, assim que acordarem, que papai tem que ir embora. A guitarra chora durante os seis minutos da música, e a gente quase chora junto.
Pra você, uma música é apenas uma música, mas pra mim uma música é uma música e um assunto, assim como uma pesquisa eleitoral é uma pesquisa eleitoral e um assunto. Um dia vou falar sobre a fome de assuntos que faz sofrer todo colunista. Pois bem. De tanto ouvir esta canção do Robert Cray, comecei a achar que é mesmo um privilégio ser homem. Um belo dia o cara se dá conta de que não sabe nada sobre si mesmo, que há muitas outras coisas para serem vividas do lado de fora da porta da rua e que se continuar na sua vidinha regrada vai perder o melhor da festa. Aí ele amansa a patroa dizendo que ela é uma mulher estupenda, não tem culpa nenhuma de ele ser um ignorante sobre si mesmo, e sai de casa e do casamento, não sem antes ter a consideração de não acordar as crianças. Ele voltará no dia seguinte pra se despedir dos pequenos, que ficarão eternamente gratos por papai ter sido camarada em deixá-los dormir antes de receber a má notícia.
Mulher também tem vontade de se descobrir, fazer sua trouxa e deixar as chaves na estante. Mas imagine a cena. "Crianças adoradas, mamãe precisa se descobrir. Papai, que é um sujeito bacanésimo, vai ficar cuidando de vocês, ok? Tchauzinho."
Punk rock. Nem a Courtney Love cantaria isso sem engasgar. Mulheres têm que se descobrir durante o trajeto do ônibus, têm que se conhecer melhor enquanto escolhem o tomate menos murcho na feira, têm que experimentar novas vivências ali no bairro mesmo. Mulheres dizem para seus filhos que vão passar o final de semana na serra com as amigas e eles automaticamente esquecem onde fica o chuveiro, imagine se ela disser que vai pra galera, conhecer o mundo. Suicídio coletivo.
Foi só um pensamento que me ocorreu enquanto ouvia Robert Cray no carro, presa num congestionamento, indo buscar minhas filhas no colégio como faço todos os dias." (fonte: http://blogmulherde40.blogspot.com.br/2011/08/far-away-de-martha-medeiros.html)
Quanto ao lado doce, nada como um pirulito com sabor de arco-íris. Amei essa crônica sobre uma roda de conversa com crianças pequenas:
"Sabor de arco-íris
O assunto em pauta é literatura. Semana do Livro, Bienal do Livro, lançamento de livros. Aleluia! Um dia a turma que não lê vai descobrir o que está perdendo. Pois entre tantos eventos para incentivar a leitura, fui convidada a participar de um que me deixou ligeiramente aflita: conversar com alunos de um maternal. Eu já havia estado no colégio Anchieta conversando com a turma da minha filha mais velha, que tem 10 anos. Agora o convite era para falar com a turma da minha filha mais nova, de"5, no Amiguinhos da Praça. Fiquei imaginando como seria ficar cercada por um monte de baixinhos que mal sabem escrever o próprio nome. Que perguntas fariam? Quantos segundos levaria para eles perderem o interesse nas minhas respostas? Perigo: crianças!
Mas não amarelei. Chegando lá, sentei no chão, numa rodinha. Vários pares de olhinhos me examinavam. Não saí correndo. A tia perguntou se alguém queria fazer uma pergunta. Oba, vou ganhar tempo até um deles criar coragem, pensei. Todos levantaram o dedo. To-dos.
A partir daí, foi uma festa. Passei meia hora na Terra do Nunca, bombardeada por um afeto e uma espontaneidade que me tornaram consciente de tudo o que a gente perde quando vira adulto. Alguém perguntou se era verdade mesmo que o papel vinha da árvore. Se eu já tinha escrito um livro sobre dinossauros. Como é que eu fazia pra dormir depois de ler uma história de terror. Se era eu mesma que juntava as páginas para montar o livro. De onde vem a palavra certa. Por que meus livros não têm desenho. Se dava pra jogar futebol e ser escritor
ao mesmo tempo. Qual o chiclete que eu mais gostava. Tu conhece a Disney? Meu pai é engenheiro. Meu pai não tem emprego. Minha mãe te adora. A minha faz macramê. Eu gosto de livro de amor e livro de monstro. Tenho dois irmãos. Eu, dois pais. Ainda durante aquela tarde, ouvi minha filha dizer que pirulito tem sabor de arco-íris. E um menino, malandro, me perguntou o que eu queria ser quando crescesse. E eu lá quero crescer?" (fonte: http://escritapaulamedeiros.blogspot.com.br/2013/07/sabor-de-arco-iris.html)
Nada como a espontaneidade e a curiosidade natural delas para trazer um sopro de otimismo, ânimo e felicidade a qualquer criatura. Crescer para quê?
Ouça aqui Robert Cray cantando e tocando "Far away".