Como uma obra que já tem 100 anos continua tão absurdamente atual? “A metamorfose”, de Franz Kafka, é uma dessas histórias. Gregor Samsa, protagonista da obra, poderia perfeitamente ser funcionário de uma empresa vivendo em um centro urbano nos dias atuais.
O livro começa com ele acordando metamorfoseado em um inseto, que poderia ser uma barata ou um besouro, ou talvez um animal de outra espécie. A partir dessa transformação, ele deixa de servir aos propósitos destinados a ele por sua família e, em última instância, por toda a sociedade.
Por não ter condições de continuar trabalhando e sustentando a família, ele acaba marginalizado dentro da própria casa.
Quando o livro foi escrito, ocorria o advento da revolução industrial, cujas relações de trabalho e poder ainda se reproduzem, em grande medida, no mundo atual.
O consumismo pode ser encarado como a "cereja do bolo" desse processo. Trabalhar, trabalhar e trabalhar, para comprar, comprar e comprar. Viver quando?
Durante a leitura, foi inevitável lembrar de um clássico do cinema: “Tempos modernos”, de Charles Chaplin. Especialmente a cena da “máquina de comer”, oferecida como alternativa para o patrão, para que os empregados da fábrica não precisassem interromper o trabalho para comer.
Também foi inevitável lembrar de um respeitável teórico contemporâneo, Zygmunt Bauman, que brilhantemente aborda o momento atual no que diz respeito a relações humanas, sociais e econômicas. Em “Vida para consumo”, há uma passagem em especial que a mim lembrou a metamorfose de Gregor Samsa, no aspecto de sua inadequação ao mundo a partir do momento em que ficou impossibilitado de trabalhar:
“... a incapacidade de atingir o ajuste perfeito entre o esforço e sua recompensa (em particular a incapacidade revelada de modo sistemático e que com o tempo solapa a crença na própria supremacia) pode ser uma fonte prolífica do “complexo de inadequação”, essa grande aflição da vida líquido-moderna. Na verdade, entre as interpretações comuns do fracasso, apenas a falta de dinheiro pode hoje em dia competir com a ausência de tempo.”
Gregor Samsa, antes da metamorfose, somente trabalhava e não tinha tempo para viver. Ao deixar de trabalhar, passou a não ter dinheiro e perdeu também o seu lugar na família e na sociedade. Poderia estar acontecendo hoje, aliás, provavelmente acontece. Não é preciso se metamorfosear em um inseto para se sentir excluído, desprezado, deslocado. Em suma, sem utilidade.
Uma leitura rápida, fluida, fundamental. Na edição de bolso da L&PM Pocket (reimpressão de 2015, foto), são 103 páginas. O mesmo volume também trás outra obra do autor, "O veredito". Dele, eu já tinha lido "O processo", do qual gostei muito, há alguns anos. Sobre
Franz Kafka, li e recomendo "Kafka vai ao cinema", de Hanns Zischler (Jorge Zahar Editor, 2005).
Em 2015, me desafiei a ler 24 livros e fechei o ano com 28 obras lidas. Para 2016, o desafio a ser superado foi de 36 livros e eu li 50! Em 2017, o desafio é ler nada menos que 70 títulos. Criei este blog para publicar breves relatos sobre cada leitura realizada, sempre relacionando os livros com filmes, músicas ou outras formas de arte. Contato: nanda.jornal@yahoo.com.br
domingo, 13 de março de 2016
domingo, 6 de março de 2016
Livro 7 – Eu sou Malala
Ela foi
alvejada pelo Talibã no rosto, voltando da escola, no Paquistão, com 15 anos.
Em 2014, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Malala Yousafzai é uma guerreira que,
desde muito jovem, aprendeu o valor da educação e da liberdade. E lutar por
elas se tornou seu objetivo, mesmo que isso significasse risco iminente de
morte. “Não quero ser lembrada como a ‘menina que foi baleada pelo Talibã’ mas
como ‘a menina que lutou pela educação’. Esta é a causa para a qual estou
dedicando minha vida”.
O livro, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, deu origem a um filme (trailer acima). É o
diário de uma adolescente. A própria autora compara seus registros com outro
diário famoso, o de Anne Frank. O que assusta um pouco é que os dramas que ela
relata aconteceram neste século, há menos de uma década. Anne Frank não
sobreviveu ao Holocausto, infelizmente. Mas Malala Yousafzai sobreviveu, felizmente, a um ataque do Talibã. Ela só
queria ir à escola. Que meninos e também as meninas pudessem frequentá-la.
Os pais de Malala, na ONU, assistindo ao discurso da filha. |
A influência do pai é inquestionável. Entusiasta da educação, inclusive de meninas, ele sempre a incentivou. “No meu lado do mundo a maior parte das pessoas é conhecida pelos filhos que têm. Sou um dos poucos pais sortudos conhecidos pela filha que têm”. As palavras foram proferidas por ele ao receber uma homenagem para Malala na França.
Desenho dela aos 12 anos: sonho de harmonia entre as religiões |
Leitura
importante, mesmo porque ainda acontecem muitos dos absurdos mencionados no
livro, como a obrigação de mulheres usarem burcas, a proibição de frequentarem
escolas e mesmo de circularem em locais públicos sem um homem da família por
perto. Isso sem mencionar a proibição de ouvir música, a prática de
apedrejamentos e açoitamentos públicos, entre outros absurdos que podem estar
acontecendo no momento em que escrevo esse texto, e também no momento em que
ele é lido.
A respeito dessas práticas, recomendo o filme Timbuktu, de 2014 (que levou o Oscar de Melhor filme estrangeiro).
Nada melhor
que fechar com as palavras de Malala no discurso proferido por ela na sede da
Organização das Nações Unidas (ONU), no dia em que completou 16 anos: “Que
possamos pegar nossos livros e canetas. São as nossas armas mais poderosas. Uma
criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo”. Uma Malala
também pode.
Assista ao
discurso na íntegra, com legendas:
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