domingo, 2 de outubro de 2016

Livro 26 – Diante da dor dos outros

Eu já conhecia e admirava muito Susan Sontag, li alguns ensaios na faculdade e tenho o livro “Sobre fotografia” há muitos anos. Em “Diante da dor dos outros” (Cia das Letras, esgotado em papel, mas disponível digital) , a autora escancara o que temos de mais sombrio. A começar pela imagem escolhida para a capa do livro: alguém está morrendo enforcado enquanto outra pessoa observa, como se fosse um espetáculo. No decorrer do ensaio, outras situações em que seres humanos serviram como “atrações” para outros seres humanos:

Água-forte “Tampoco”, de Goya, que ilustra a capa do livro.
Em geral, os corpos com ferimentos graves que aparecem em fotos publicadas são da Ásia ou da África. Essa praxe jornalística é herdeira do costume secular de exibir seres humanos exóticos — ou seja, colonizados: africanos e habitantes de remotos países da Ásia foram mostrados, como animais de zoológico, em exposições etnológicas montadas em Londres, Paris e outras capitais européias, desde o século XVI até o início do XX.

Susan Sontag traz à tona uma antiga discussão sobre o valor estético de fotografias de guerra. Como imagens dessa natureza são expostas em galerias e ganham prêmios em todo o mundo? Impossível não lembrar das fotos do brasileiro Sebastião Salgado, que tem em seu portfólio livros sobre imigração, movimentos sociais e outras situações difíceis. Suas fotos também podem ser consideradas arte, mas há quem diga que isso seria incoerente. No entanto, Sontag defende a beleza presente em fotos de guerra, bem como a fotografia como forma de arte:

A idéia não cai bem quando se aplica a imagens captadas por câmeras: encontrar beleza em fotos de guerra parece insensível. Mas a paisagem da devastação ainda é uma paisagem. Existe beleza nas ruínas. (...) Transformar é o que toda arte faz, mas a fotografia que dá testemunho do calamitoso e do condenável é muito criticada se parece “estética”, ou seja, demasiado semelhante à arte. (...)A foto dá sinais misturados. Pare isto, ela exige. Mas também exclama: Que espetáculo!

Mais adiante, a autora menciona Sebastião Salgado e procura compreender suas intenções ao expor e publicar as fotos de sua série “Êxodos”:

Tiradas em 39 países, as fotos de migração de Salgado reúnem, sob esse único título, uma multidão de causas e de modalidades de infortúnio diversas. Fazer o sofrimento avultar, globalizá-lo, pode incitar as pessoas a sentir que deveriam “importar-se” mais.

Avançando para as fotos de guerra preservadas e reproduzidas exaustivamente, a exemplo dos registros dos campos de concentração nazista - citando Hannah Arendt para alertar que esses registros foram efetuados depois da entrada dos aliados nesses campos – Susan Sontag passa a questionar o que se convencionou chamar de memória coletiva. Ela existe mesmo ou é algo em que nos tentam fazer acreditar?

Toda memória é individual, irreproduzível — morre com a pessoa. O que se chama de memória coletiva não é uma rememoração, mas algo estipulado: isto é importante, e esta é a história de como aconteceu, com as fotos que aprisionam a história em nossa mente.

O livro é de 2003. Portanto, anterior ao advento do Facebook e de outras redes sociais. No entanto, a mídia já ditava muitas regras e a vontade de virar celebridade instantaneamente fazia parte do dia a dia. As representações passaram a ser a única realidade conhecida. Poderia perfeitamente traduzir o que acontece hoje em nossas vidas virtuais:

Segundo uma análise muito influente, vivemos numa “sociedade do espetáculo”. Toda situação tem de se transformar em espetáculo para ser real — ou seja, interessante — para nós. As próprias pessoas aspiram a tornar-se imagens: celebridades. A realidade renunciou. Só existem representações: mídia.

Se só o que existe são representações, o que fazer com aquelas que nos fazem sofrer? Como encarar as representações do que de mais cruel já foi realizado por nós, seres humanos, a outros seres humanos? Não resta dúvida de que essas imagens não devem ser esquecidas. Precisamos olhar para elas, sentir o mal que elas nos fazem sentir, lembrar que não queremos mais imagens que causem esse tipo de sofrimento. O desafio é: como e onde fazer isso?  Para Susan Sontag, falta espaço para esse tipo de contemplação no mundo.

Certas fotos — emblemas de sofrimento, como o instantâneo do garotinho no Gueto de Varsóvia em 1943, de mãos levantadas, arrebanhado na direção de um veículo, rumo ao campo de extermínio — podem ser usadas como advertências, como objetos de contemplação destinados a aprofundar o sentido de realidade de uma pessoa; como ícones seculares, se preferirem. Mas isso pareceria exigir o equivalente a um espaço sagrado ou meditativo para olharmos essas fotos. Um espaço reservado para sermos sérios é algo difícil de conseguir na sociedade moderna, cujo modelo principal de espaço público é a megastore (que também pode ser um aeroporto ou um museu).

O livro é excelente. Desses que a gente abre e só fecha depois de terminar.

O fotógrafo Sebastião Salgado ficou alguns anos sem trabalhar depois da publicação da série Êxodos. Essas questões sobre a beleza em fotos que mostram sofrimento também mexeram com ele. O documentário de Wim Wenders, “O sal da terra”, conta um pouco essa história. O filme concorreu ao Oscar de Melhor Documentário em 2015. Gostei muito.


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